Governo Lula avalia novo modelo de financiamento para destravar compra de imóveis pela classe média

03 de julho de 2025 às 14:15
CASA PRÓPRIA

Foto: reprodução

Por redação com O Globo

Com o objetivo de destravar o financiamento da casa própria para a classe média, o governo estuda um novo formato para ser usado na compra de imóveis de até R$ 1,5 milhão. As mudanças incluem flexibilizar o volume de recursos da poupança que fica retido no Banco Central e criar um mecanismo para aumentar a atratividade dos contratos corrigidos pelo IPCA — índice oficial de inflação.

Um esboço da proposta, que é capitaneada pelo BC, já foi levado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pediu celeridade na formatação do novo modelo de financiamento habitacional. Em meio à queda da popularidade, Lula quer garantir recursos para a compra da casa própria pela classe média.

Atualmente, os depósitos na poupança são a principal fonte de recursos para o crédito imobiliário, mas sua participação vem caindo junto com redução no saldo da caderneta em meio ao aumento do acesso da população a aplicações financeiras mais rentáveis.

No fim de 2021, a poupança representava 46% do "funding" do financiamento habitacional contra 32% no encerramento do ano passado, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).

Duas frentes

Com intuito de resolver um problema estrutural do mercado, a proposta avaliada pelo BC atua principalmente em duas frentes.

A primeira, com um efeito mais rápido, permitiria uma flexibilização nas regras que os bancos têm de seguir para aplicação dos recursos captados via poupança. Atualmente, 65% dos depósitos são direcionados obrigatoriamente para crédito imobiliário, enquanto 20% ficam retidos no BC na forma de depósitos compulsórios e os outros 15% podem ser usados livremente pelos bancos.

De maneira geral, a ideia é que os bancos ganhem um "bônus" de aplicação "livre" dos recursos da poupança por um período determinado para cada real a mais usado para bancar o crédito imobiliário. Funcionaria assim: a cada R$ 1 a mais que a instituição emprestar em habitação, o BC daria o benefício de usar o mesmo volume em qualquer aplicação.

Esse "bônus" seria descontado em parte da parcela de compulsório, mas também há a possibilidade de ser retirada da fatia de direcionamento obrigatório relativa aos recursos devolvidos aos bancos após o pagamento das parcelas pelos clientes.

Injeção de até R$ 80 bi

Com a operação casada, haveria a ampliação dos recursos da poupança que podem ser usados para o financiamento imobiliário, mas com menor prejuízo à estratégia do BC de controle de liquidez e da inflação.

O compulsório é usado pela autoridade monetária para controlar o volume de dinheiro em circulação na economia. Integrantes do governo afirmam que o potencial injetado no mercado seria entre R$ 70 bilhões a R$ 80 bilhões, fontes do mercado veem algo em torno de R$ 40 bilhões.

Essa opção seria uma alternativa à simples redução da parcela de compulsório para aumentar o direcionamento obrigatório, como chegaram a defender os bancos, liderados pela Caixa, líder em crédito imobiliário.

Essa possibilidade desenhada pelo BC também interessa às instituições financeiras porque libera recursos para aplicação em outras modalidades de crédito com taxas mais elevadas, o que permite maior rentabilidade. Ou seja, seria um estímulo para aumentar a parcela dos recursos aplicados na habitação.

Mudança em contratos via IPCA

A outra parte da proposta do BC prevê aumentar a atratividade dos contratos corrigidos pelo IPCA. Atualmente, os bancos já oferecem essa modalidade, normalmente com juros mais baixos do que nos financiamentos via poupança, mas têm baixa adesão, uma vez que o saldo devedor é atualizado mensalmente pela variação da inflação.

Como o contrato imobiliário é longo, de até 30 anos, a depender do cenário econômico, o comportamento da inflação pode aumentar muito o saldo devedor ao longo do tempo e encarecer o custo das parcelas. Do total de contratações de crédito habitacional entre janeiro de 2024 e março de 2025, apenas 2% usaram o índice de inflação como indexador.

Nos financiamentos realizados com base em recursos da poupança, a atualização é feita pela TR, taxa que remunera os investimentos na caderneta. A remuneração da TR é bem mais baixa dos que outras aplicações no mercado — o que permite os juros mais modestos no crédito imobiliário. A TR atualmente é de 2,10% ao ano, contra 15% da taxa Selic.

A ideia do BC é criar uma espécie de adicional de amortização nas prestações dos contratos corrigidos pelo IPCA de modo a tornar essa trajetória mais "esperada".

Segundo um interlocutor que teve acesso ao esboço da proposta, o desenho prevê uma amortização maior no começo do financiamento para que o comportamento futuro da inflação tivesse um impacto menor nas mensalidades. Além disso, haveria um mecanismo que jogaria grandes flutuações para o final do contrato.

Com a indexação dos empréstimos imobiliários ao IPCA, os bancos poderiam diversificar mais a fonte de recursos, que serão equiparadas à remuneração de mercado, usando mais títulos indexados ao índice de preços. Isso possibilitaria ainda, no futuro, um impulso ao mercado secundário de crédito imobiliário, como já chegou a ser discutido no governo.

Na avaliação de pessoas envolvidas na formatação do plano, essa mudança teria um efeito maior no médio e longo prazo, mas essa perspectiva não impede que o modelo seja anunciado em breve. Questionado, o BC disse que não comenta o assunto.

Ideia foi levada a Lula

A proposta foi apresentada ao presidente Lula em reunião na semana passada com a presença do presidente do BC, Gabriel Galípolo, dos ministros das Cidades, Jader Filho, e da Fazenda, Fernando Haddad, e do presidente da Caixa Econômica Federal, Carlos Vieira.

Segundo interlocutores, Lula tem pressa em uma solução e pediu que as condições de financiamento fiquem próximas das oferecidas nos contratos que usam os recursos da poupança, cuja taxa de juros é limitada a 12% ao ano, além da Taxa Referencial (TR). Essas taxas, contudo, devem ser arbitradas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

As linhas gerais do plano também estão sendo apresentadas a associações do setor imobiliário e a bancos que concedem crédito habitacional. Depois dessa rodada de conversas, deve haver novas reuniões com o presidente Lula e com os ministros que participam da discussão.

A queda de recursos da poupança vem afetando o acesso da classe média ao financiamento para a casa própria, público que o presidente quer reconquistar. No ano passado, a Caixa, maior participante do mercado, teve de restringir o acesso aos financiamentos imobiliários custeados pela poupança em meio ao orçamento apertado e à forte demanda.

Nesse contexto, o governo destinou R$ 15 bilhões do fundo social do pré-sal para criar nova faixa do Minha Casa Minha Vida, para atender famílias com renda de até R$ 12 mil na compra de imóveis de até R$ 500 mil. Mas avalia que é preciso fazer mais.

O presidente do BC disse recentemente que um novo modelo de funding para o crédito imobiliário seria apresentado em breve para substituir a poupança, que passa por uma redução estrutural em meio à democratização dos investimentos financeiros. Segundo Galípolo, assim que a proposta estiver madura, será anunciada pelo presidente Lula.

— Isso impõe a necessidade de se pensar um regime de transição para um novo modelo de financiamento imobiliário, que a gente entende que deveria buscar alternativas de captação em mercado junto com outras alternativas e misturas usando os recursos que nós temos disponíveis para fazer essa transição — disse, na semana passada.

Em entrevista à TV Record, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o governo estava dando os últimos retoques em uma proposta para atender a compra da casa própria pela classe média.

— O que está faltando acontecer é o crédito imobiliário para a classe média, que ainda é pequeno na comparação internacional – na casa de 10% do PIB. Tem país, como o Chile, que é 30%. Temos uma avenida para percorrer e estamos nesse movimento. Tivemos uma longa reunião com o presidente Lula para explorar novos instrumentos de crédito imobiliário com garantia, para que o juro seja baixo e possamos alavancar essa indústria, fundamental para o País.

Efeitos colaterais

Para Ana Maria Castelo, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), apesar da tentativa do governo de aumentar a atratividade de outras linhas de crédito, o financiamento lastreado na poupança segue importante.

— O melhor dos mundos seria que não dependêssemos da poupança e do FGTS, que fosse possível utilizar os recursos captados no mercado, mas enquanto as taxas de juros estiverem no patamar que estão, o mercado imobiliário e as pessoas vão precisar da poupança e do FGTS — afirmou ela.

A atividade imobiliária é um importante motor das economias de diversos países, mas mexer na regulação do financiamento pode ter efeitos colaterais negativos no momento atual, ponderou Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados.

Isso se aplica tanto para a ampliação do crédito imobiliário quanto para as novas regras do crédito consignado para empregados do setor privado, que usa o FGTS como garantia de empréstimos, aprovado ontem no Congresso.

— A medida, em si, é interessante — afirmou Vale, referindo-se ao crédito consignado, mas acrescentando que o mesmo serve para tentativas de ampliar o crédito imobiliário. — O timing, obviamente, tem um interesse político no meio do caminho, né? Essa é a questão que se coloca. Era o momento certo?

Regras remontam aos anos 1960

As regras que destinam boa parte dos recursos captados pelos bancos nas cadernetas de poupança, que o Banco Central (BC) e a equipe econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva querem mudar para ampliar o montante direcionado para o crédito imobiliário, remontam aos primórdios das políticas públicas para o setor, criadas na década de 1960.

O financiamento imobiliário foi peça importante na reforma do sistema financeiro empreendida pelo primeiro governo militar, ainda em 1964, ano do golpe de Estado.

Novamente reformado após a estabilização da economia, na década de 1990, a regulação do financiamento imobiliário continuou – e segue – marcada por essas origens. Isso ecoa no direcionamento – os bancos são obrigados a aplicar determinando percentuais de determinadas fontes de captação no crédito imobiliário – e na fixação de juros – limitados a 12% ao ano.

A reforma de 30 anos atrás, que criou o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), tentou abrir espaço para o mercado financeiro, seguindo o modelo americano. Deu parcialmente certo, mas o agregado das carteiras de crédito imobiliário não passa de cerca de 10% do PIB – estão em 10,3%, segundo a Abecip, bem abaixo de outros países, incluindo emergentes.

A via pelo mercado financeiro sempre acabou freada pelas elevadas taxas de juros, uma marca da economia nacional mesmo após a estabilização. O problema é ainda maior no setor, porque os empréstimos imobiliários, principalmente para a aquisição de imóveis pelas famílias, são de longo prazo. Ano após ano, a cobrança de taxas sobre taxas eleva os custos financeiros exponencialmente, o que se reflete em prestações mais caras.