Nos EUA e na Europa, governos estimulam natalidade entre nativos e barram imigrantes
O Globo
Logo no início de seu atual mandato, o presidente Donald Trump assinou dois decretos para aumentar o número de americanos nascidos nos EUA: um que reduz os custos da fertilização in vitro (FIV) e outro para acabar com o direito à cidadania para filhos de imigrantes irregulares nascidos no país. Na Hungria, Viktor Orbán, conhecido por sua política anti-imigração, reafirmou sua rejeição a uma sociedade “multiétnica” e idealizou uma “raça húngara pura”. Em fevereiro, o premier anunciou que mulheres com dois ou mais filhos serão isentas de Imposto de Renda para sempre. Diante dessas políticas, que combinam incentivos à natalidade com cerco aos imigrantes, quem esses líderes realmente desejam que tenha filhos? Para especialistas, as iniciativas desencadeiam um novo conceito de eugenia, em que governos, alarmados com o declínio das taxas de natalidade, incentivam a procriação — mas apenas entre os considerados “cidadãos puros”.
Baixa taxa de natalidade
Na Europa, historicamente conhecida pela baixa taxa de natalidade, o partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), hoje com a segunda maior bancada do Parlamento, já afirmou que “vê a ideologia do multiculturalismo como uma séria ameaça à paz social e à existência contínua da nação como uma entidade cultural”, pedindo por “famílias grandes em vez de imigração em massa”.
Com pressão do AfD, o novo chanceler alemão, Friedrich Merz, traçou uma posição mais dura em relação à imigração, planejando recusar requerentes de asilo nas fronteiras e eliminar a naturalização acelerada. A Alemanha oferece, além de licença parental, incentivos fiscais para casais com filhos desde 2007.
Segundo a ONU, dois terços dos países europeus têm medidas para aumentar suas taxas de natalidade. A Itália e a França, por exemplo, também oferecem subsídios a famílias que têm filhos. Em 2023, a premier italiana, Giorgia Meloni, afirmou que o fluxo de imigrantes legais não é a solução para a crise demográfica do continente.
Na Hungria de Orbán, que já declarou que “precisa de mais crianças húngaras”, a FIV é gratuita em clínicas estatais, e casais com filhos têm direito a subsídios para a compra de casas. Uma família com três ou mais filhos pode receber até cerca de R$ 270 mil por uma casa nova (na cotação atual).
Em entrevista ao GLOBO, a cientista política Débora Thomé, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Columbia, enfatizou que a cultura pró-natalista está diretamente relacionada às questões de imigração. Para ela, esses governos, principalmente conservadores, estão preocupados com os “cidadãos que vão decidir o futuro daquele país”.
— Quem vai dar essas cartas é quem está tendo filho; e quem está tendo filho são os migrantes que já estão no país há muito tempo. Esses governos ultranacionalistas não querem culturas estrangeiras modificando seus costumes — analisa Thomé. — O tema da eugenia que passa por esses governos é: “Queremos ter mais americanos de verdade” ou “queremos ter mais franceses de verdade”.
Historicamente, o pró-natalismo nos EUA esteve ligado à eugenia. O ex-presidente Theodore Roosevelt (1858- 1919) — cujos mandatos coincidiram com o primeiro período de imigração maciça de grupos oriundos do Sul e do Leste da Europa no início do século XX — cunhou o termo “suicídio racial” ao criticar as mulheres brancas que se evadiam, segundo ele, do dever de se tornarem mães.
Agora, o governo Trump — cuja Secretaria de Transportes emitiu um memorando priorizando o financiamento de infraestrutura para comunidades com taxas de natalidade mais altas — impõe políticas rigorosas contra imigrantes. O republicano foi eleito com um discurso anti-imigração e segue reafirmando essa política, sobretudo com suas polêmicas deportações em massa.
Escolha de genes
Um exemplo do foco em um determinado tipo de crianças é o casal americano Simone e Malcolm Collins, que se tornou a vitrine do pró-natalismo nos EUA. Em 2022, ela, então em sua sexta rodada de fertilização in vitro, recebeu a notícia de que o embrião 3 poderia ser em breve sua filha: uma garotinha com, segundo os testes, uma chance boa de evitar doenças cardíacas, câncer, diabetes e esquizofrenia.
Casados, pais de quatro filhos e esperando o quinto, eles defendem o “florescimento humano de longo prazo, para a criação de filhos e para a celebração de famílias fortes”. Os Collins, que apoiam Trump, gastaram centenas de milhares de dólares em FIV e na triagem de seus embriões para QI, risco de depressão e outros marcadores. Muitos especialistas classificam essa prática como eugenia. Mas, ao GLOBO, Malcolm refutou a ideia.
— Eugenia é, por definição, a crença de que existem genes bons e ruins, e que governos devem pressionar as pessoas para que tenham mais genes bons. Isso é antitético. Defendemos a ideia poligênica: a forma como uma pessoa se reproduz e os genes que ela transmite devem ser escolha dela e de mais ninguém — disse. — Escolher sua esposa, em parte porque ela é inteligente, não é “melhorar a espécie”?
Para a socióloga Thays Monticelli, coordenadora do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da UFRJ, governos ultranacionalistas escolhem e incentivam a reprodução de seus próprios cidadãos, resultando em uma população segregada e “tradicional”.
— Qual é o filho desejado na construção de um Estado-nação da extrema direita? É o filho dessa população selecionada, segregada, que eles elegem como a sua população fundamental — afirma Monticelli. — São famílias brancas, heteronormativas e que preservam essa perspectiva da família tradicional. Qualquer coisa que se difira dessa norma, sejam filhos de imigrantes ou pessoas que não se enquadram no modelo, pode ser alvo de discriminações.
14 filhos
O panorama demográfico está em declínio há décadas no mundo. De acordo com a ONU, a população do planeta deve aumentar pelo menos até o ano 2086, quando chegará a 10,4 bilhões de pessoas, mas o crescimento é cada vez mais desigual. O número de 2,1 filhos por mulher, considerado necessário para manter a população estável, só deverá ser atingido por seis países em 2100. Atualmente, a taxa de fertilidade global é de 2,2 filhos por mulher.
Nos EUA, que têm a taxa de fertilidade de 1,6, assim como o Brasil, pela primeira vez em 175 anos, os migrantes foram uma das causas que explicaram o crescimento da população entre 2022 e 2023. Enquanto o número de nascimentos em 2023 foi de 3,591 milhões — uma queda de 2% —, os imigrantes aumentaram em 1,6 milhão no período, um crescimento de aproximadamente 3,6%.
O bilionário Elon Musk, braço-direito de Trump e que tem 14 filhos, defende abertamente políticas pró-natalistas. Em março, Vivian Wilson, filha trans do bilionário, acusou o pai de ter usado fertilização in vitro para escolher o sexo dos filhos. O declínio demográfico, de acordo com Musk, é a maior ameaça à civilização. “Tenha filhos de qualquer forma ou a Humanidade vai morrer de fraldas geriátricas em uma lamúria”, escreveu no X.